1.
As origens
A
Geografia crítica -- ou simplesmente Geocrítica --
nasceu em meados da década de 1970, inicialmente na França
e posteriormente na Espanha, Itália, Brasil, México,
Alemanha, Suíça e inúmeros outros países.
Essa
expressão, na origem, foi criada ou pelos menos identificada
com a obra A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para
fazer a guerra (de 1976), de Yves Lacoste, e com a proposta
da revista Hérodote (cujo primeiro número
também foi editado em 1976), que no início era uma
revista de "geopolítica crítica" e também
de geografia, com especial ênfase na renovação
do seu ensino em todos os níveis.
Pode-se
dizer que os pressupostos básicos dessa "revolução" ou reconstrução
do saber geográfico eram a criticidade e o engajamento.
Por criticidade se entendia uma leitura do real -- isto é,
do espaço geográfico -- que não omitisse as
suas tensões e contradições, que ajudasse
enfim a esclarecer a espacialidade das relações de
poder e de dominação. E por engajamento se pensava
numa geografia não mais "neutra" e sim comprometida
com a justiça social, com a correção das desigualdades
sócio-econômicas e das disparidades regionais. A produção
geográfica até então, dizia-se -- embora admitindo
exceções: Réclus, Kropotkin e outros -- ,
sempre tivera uma pretensão à neutralidade e costumava
deixar de lado os problemas sociais (e até mesmo os ambientais
na medida em que, em grande parte, eles são sociais), alegando
que "não eram geográficos".
É lógico
que essa nova maneira de encarar a geografia não surgiu
do nada. Ela se enraizou e floresceu num contexto de revisão
de idéias e valores: o maio de 1968 na França, as
lutas civis nos Estados Unidos, os reclames contra a guerra do
Vietnã, a eclosão e a expansão do movimento
feminista, do ecologismo e da crise do marxismo... E ela se alimentou
de muito do que já havia sido feito anteriormente, tanto
por parte de alguns poucos geógrafos quanto por outras correntes
de pensamento que podem ser classificadas como críticas.
Desde o seu nascedouro, a Geografia crítica encetou um diálogo
com a Teoria crítica (isto é, com os pensadores da
Escola de Frankfurt), com o anarquismo (Réclus, Kropotkin),
com Michel Foucault, com Marx e os marxismos (em particular os
não dogmáticos, tal como Gramsci, que foi um dos
raros marxistas a valorizar a questão territorial), com
os pós-modernistas e inúmeros outras escolas de pensamento
inovadoras. Mas ela principalmente representou uma abertura para
-- e um entrelaçamento com -- os movimentos sociais: a luta
pela ampliação dos direitos civis e principalmente
sociais, pela moradia, pelo acesso à terra ou à educação
de boa qualidade, pelo combate à pobreza, aos preconceitos
de gênero, de cultura/etnia e de orientação
sexual, etc.
Quase
ao mesmo tempo, embora alguns anos antes, surgia na Grã-Bretanha
e principalmente nos Estados Unidos a chamada Geografia radical,
que significou uma reação dos geógrafos anglo-saxônicos
-- ou pelo menos de uma parte deles -- contra o excesso de quantitativismo,
contra a denominada Geografia pragmática, ou quantitativa,
que predominou nesses países nos anos 1960 e na primeira
metade da década de 70. Também a Geografia radical
reprochou a pretensa neutralidade da tradição geográfica
e, principalmente, o comprometimento implícito dessa Geografia
quantitativa com o poder instituído, com o Estado capitalista
e com as grandes empresas. Era preciso revirar a geografia, afirmava-se,
usá-la a favor dos dominados, dos oprimidos ou, como diríamos
hoje, dos excluídos.
Da
mesma forma que a Geografia crítica,
a Geografia radical buscou subsídios tanto nos movimentos
populares e sociais quanto nas correntes radicais de pensamento,
em especial o marxismo. Neste ponto, ela diferiu um pouco da Geografia
crítica, pois esta desenvolveu-se de forma um pouco mais
aberta e pluralista, tendo maior convívio com outras correntes
de pensamento e, inclusive, demonstrando sérias restrições
ao socialismo real e ao marxismo "oficial" ou ortodoxo,
o marxismo-leninismo. Além disso, a Geografia crítica
sempre insistiu na renovação escolar, na crítica à escola
e à geografia tradicionais, na necessidade de um novo ensino
voltado para desenvolver no educando a criticidade, a inteligência
no sentido amplo do termo (ao invés de mera capacidade de
memorização) e, no final das contas, o senso de cidadania
plena. Já a Geografia radical -- talvez pelo fato de que
a disciplina geografia foi excluída do currículo
escolar das escolas fundamentais e médias dos Estados Unidos
durante mais de três décadas (nos anos 1990 ela voltou,
inclusive revalorizada) -- pouco se preocupou com o ensino. O seu
grande adversário -- e portanto, o alvo a ser atingido --
era a Geografia pragmática e não o tradicionalismo
nas escolas fundamentais e médias e, por tabela, no ensino
universitário.
É sintomático o fato de que
na última década do século XX, quando começou
a ocorrer um forte movimento de reconstrução do sistema
escolar norte-americano (suscitado em grande parte pela necessidade
de concorrer no mercado internacional, sob novas condições
históricas, com a Europa, com o Japão e com outras
economias dinâmicas) e a sua abertura à revolução
técnico-científica, à globalização
e inclusive aos direitos humanos, os educadores e geógrafos
escolares nesse país tiveram que buscar subsídios
em outras sociedades -- na França, na Alemanha, na Espanha
e até mesmo no Brasil. Isso porque, nestes sistemas nacionais
de ensino, a disciplina geografia nunca chegou a ser completamente
eliminada e, além do mais, ocorreram aí nos anos
80 vigorosos movimentos de renovação na geografia
escolar, algo que os Estados Unidos não vivenciaram nesse
período. Pouco a pouco, nas escolas elementares e médias
norte-americanas vai se tornando usual o ensino da geografia, inclusive
com uma maior carga horária a partir de mais ou menos 1994,
que se preocupa com as relações de gênero (homem/mulher),
com a questão da orientação sexual, com novas
formas de preconceito étnico e cultural, com as desigualdades
internacionais e inter-regionais, com os problemas ambientais,
etc., algo que para eles é novo em geografia (embora venha
sendo introduzido a um ritmo acelerado), mas que para nós
já se tornou relativamente banal desde os anos 1980.
![]() |

Vemos acima duas ilustrações representativas da Geografia radical (em cima) e da Geografia crítica (embaixo) nos seus primórdios.
A imagem de cima, uma versão espanhola (publicada na revista Geo-critica, de Barcelona) de uma ilustração da revista norte-americana Antipode - A radical journal of Geography, mostra a atitude dos geógrafos radicais, que se apossam da geografia -- aí representada como uma bela e desnuda mulher -- e a carregam através do "rio do Compromisso", para horror de um geógrafo quantitativo, que vê com desespero essa atitude. Ao lado do geógrafo pragmático, no chão, existem alguns objetos que ele utiliza: são os modelos, que esquematizam e formalizam a realidade. Já o geógrafo radical, representado de forma bem diferente do quantitativo (mais jovem, com barba, sem terno nem malinha de executivo), carrega a geografia para o lado do rio onde existem problemas (vide a fábrica poluidora no fundo da ilustração) e pessoas reais, com os seus problemas e dilemas.
A imagem de baixo, que foi publicada no número 2 da revista francesa Hérodote - Revue de géographie et de géopolitique, mostra uma sala de aula com uma série de alunos, que na realidade são pensadores famosos (Marx, Stálin, Lénin, Mao, Proudhon, Gramsci, Kropotkin... e até mesmo H.Kissinger no canto, com um chapéu de burro, na época ministro norte-americano para as relações exteriores) e estão observando um quadro-negro, no qual está desenhado um mapa. Todos eles estão aprendendo geografia, ou seja, estão procurando rever as suas idéias a partir de uma perspectiva espacial.
Essas duas revistas -- a francesa Hérodote (existente desde 1976) e a norte-americana Antipode (criada em 1969) -- foram importantes nesses movimentos de renovação, pois eram nos anos 70 órgãos aglutinadores de geógrafos contestadores, grupos relativamente pequenos na época. Elas foram assim pólos de irradiação de novas idéias geográficas, mas essa função hoje já se espalhou e diversificou. Essas revistas ainda existem, mas tão somente como uma pálida expressão cultural e social do que representaram no passado, pois por um lado esses movimentos em grande parte convergiram e se expandiram (ou foram reatualizados) para outros lugares -- nos quais surgiram bons trabalhos de pesquisas e novas (ou renovadas) publicações -- e, por outro lado, essa Geografia crítica ou radical, ou simplesmente Geocrítica como advoga a mencionada revista espanhola, tornou-se cada vez mais complexa e plural, não se restringindo mais a grupos específicos que se expressam através de algumas poucas revistas.
2.
A fase atual
Nos
dias atuais existem geografias críticas, ou radicais, no
plural. Afinal, toda oposição é mais ou menos
unida no início, no processo de luta contra o status
quo. É uma frente, que quanto começa a se tornar
hegemônica manifesta todas as suas contradições,
que inclusive são positivas na medida em que o pensamento único
ou unívoco é autoritário e empobrecedor. E
como o(s) adversário(s) já não existe mais,
ou pelo menos não tem mais a presença marcante que
tinha no passado -- a geografia quantitativa praticamente sumiu
do mapa, embora a matemática, a estatística, a lógica
formal e os computadores continem a ser bastante utilizados, muitas
vezes até mais que nos anos 60 ou 70, só que sob
outros prismas diferentes daquele intrumental-pragmático;
e a geografia tradicional já não tem a menor condição
de cercear o pensamento crítico e nem mesmo de emular com
ele --, a questão agora é a busca de caminhos próprios
ou, infelizmente, para alguns, a acirrada disputa
por poder, por lugares na mídia, nas publicações,
nos departamentos, nas universidades, em cargos governamentais,
etc.
Desde
o início havia uma clivagem latente entre os radicais anglo-saxônicos
-- que em grande parte foram oriundos da geografia quantitativa,
que se esgotou nos anos 70, e procuraram construir uma teoria geográfica
formal e esquemática, com freqüência inspirada
numa leitura positivista do marxismo (a influência do althusserianismo
aí foi enorme, paradoxalmente muito maior que na geografia
francesa) -- e os críticos latinos, que tiveram uma maior
abertura à pluralidade teórico-metodológica
e um produtivo diálogo com Foucault. Mas essa clivagem subdividiu-se,
tornou-se cada vez mais complexa, não sendo mais suficiente
para dar conta da situação hodierna. Sempre houve
também, desde os anos 70, uma enorme dificuldade em encaixar
a geografia física nesse movimento de renovação.
Afinal, praticamente todos -- ou pelo menos a imensa maioria --
os pioneiros da geografia crítica ou radical eram identificados
com a geografia humana, em especial com a geografia política/geopolítica,
com a geografia urbana e com a geografia econômica. Foi no
estudo do subdesenvolvimento, da justiça social, da pobreza
e da marginalidade, das relações de poder no espaço,
da construção social do espaço enfim,
que a(s) geografia crítica ou radical se afirmou.
A
geografia radical anglo-saxônica, a bem da verdade, sequer tentou incorporar
seriamente o estudo geográfico da natureza. Quando se consulta
a revista Antipode na sua fase áurea, de 1969 até por
volta de 1980, nem mesmo com o uso de uma lupa iremos encontrar
algum artigo de geografia física. Talvez isso se deva, pelo
menos em parte, à tradição acadêmica
norte-americana de situar a geomorfologia como um ramo da geologia
e a climatologia como um subproduto da física. Mas é inegável
que quando se procura esmiuçar o que significa espaço na
obra de algum geógrafo anglo-saxônico radical -- seja
em David Harvey, R. Peet, N. Smith, J.R. Short, P. Taylor, D. Slater,
G. Parker ou qualquer outro do mesmo calibre --, dificilmente iremos
nos deparar com alguma referência aos processos naturais
em si. Em contrapartida, na geografia crítica houve desde
o início uma tentativa de levar em conta não apenas
a questão ambiental mas também a natureza em si.
Podemos encontrar inúmeros artigos de Jean Tricard, de G.
Bertrand e outros geógrafos físicos na revista Hérodote em
sua fase áurea, de 1976 até meados dos anos 80. Inclusive
existem nela números especiais dedicados ao estudo geográfico
da natureza e às relações entre geografia
e ecologia.
Todavia,
foram afinal movimentos basicamente exógenos à geografia,
mesmo que eventualmente tenham contado com a contribuição
de um ou outro geógrafo -- isto é, a crise ambiental
planetária, a eclosão do ecologismo e o advento de
um novo pensamento holístico --, que ofereceram a esta a
possibilidade de uma incorporação mais efetiva do
estudo da natureza no bojo do processo de renovação
crítica ou radical. As idéias de "a Terra, planeta
vivo" (tão cara a Tricard, embora de inspiração
em Lovelock), de uma abordagem holística do real (que não
se confunde com a totalidade marxista, que possui um viés
economicista e encara a natureza tão somente como recurso)
e a expansão dos estudos de impactos ambientais (algo decorrente
da necessidade social de preservar/conservar o meio ambiente),
acabaram oferecendo uma nova luz no antigo dilema geográfico
de integrar os estudos da sociedade e da natureza.
Simplificando
bastante, podemos concluir que existem inúmeras geografias
críticas, que dependem fundamentalmente dos problemas estudados
e da opção teórico-metodológica do estudioso.
Sujeito e objeto se entrelaçam, pois como afirmou o filósofo
Merleau-Pointy:
"Não há uma pergunta que resida
em nós e uma resposta que esteja nas coisas, um ser exterior
a descobrir e uma consciência observadora. A solução
está também em nós, e o próprio ser é problemático.
Há algo da natureza da interrogação que se transfere
para a resposta".
![]() |
Nesta outra ilustração da revista espanhola Geo-critica, podemos discernir quatro olhares geográficos diferentes sobre uma mesma(?) realidade, no caso uma pequena propriedade rural. No alto, de terno e gravata, vemos um geógrafo quantitativo imaginando que modelo matemático seria ideal para se explicar -- ou esquematizar? -- isso. Já do mesmo lado esquerdo, mas abaixo, temos o geógrafo (ou professor) tradicional, que procura sintetizar a paisagem, isto é, enfocar todos aqueles itens que fazem parte do esquema "a Terra e o Homem". Do lado direito, no alto, temos o geógrafo da percepção, que vai procurar retratar a " realidade vivida" das pessoas. E nesse mesmo lado, abaixo, temos o geógrafo radical, que só enxerga a pobreza (ou a exploração) existente nessa realidade. Sem dúvida que essa representação é caricatural, pois a diversidade de enfoques (e as nuanças que existem em cada um deles) é bem mais rica e complexa do que essa divisão em quatro geografias. Além disso, não há aí nenhuma referência ao estudo geográfico da natureza, que provavelmente seria levado em conta, nessas quatro visões, somente pelo tradicionalista. Mas talvez elas tenham sido as correntes geográficas mais representativas, pelo menos na geografia humana, nas décadas de 1970 e 80. Só que desde esta última década, os anos 80, já existe sem dúvida uma progressiva tendência no sentido de uma relativa convergência dessas correntes -- cada uma aproveitando algo das outras. A geografia fenomenológica ou da percepção, por exemplo, tanto pode ser "de esquerda" ou crítica (quando não omite os problemas sociais e faz uso de autores como Merleau-Pointy, Sartre e outros fenomenológicos/existencialistas que nunca deixaram de valorizar as desigualdades e as relações de poder), como pode ser "tradicional" ou meramente subjetivista (quando, na trilha de autores como Yi-Fu, omite as relações sociais de dominação e enfoca o real numa perspectiva de "integração" do indivíduo ao meio). E a(s) geografia(s) crítica(s) tanto pode(m) ser dogmática e economicista (supervalorizando o "modo de produção", a exploração e o imperialismo), como também pode(m) ser pluralista, democrática, inovadora e inclusive assimilar métodos/técnicas fenomenológicos (tais como as experiências de vida e a História oral). Existe ainda a questão do ensino, pois é no sistema escolar que a geografia vê-se obrigada a reafirmar a sua unidade. Na pesquisa e na atividade docente a nível universitário cada um pode ser especialista e todos podem deixar de lado a questão da unidade da ciência geográfica. (Ou melhor, quase todos, pois sempre há os que ficam encarregados da discussão epistemológica). No ensino fundamental e médio, entretanto, ocorre o oposto, pois aí o geógrafo não pode se furtar ao desafio de analisar o natural e o social concomitantemente, nas suas especificidades e principalmente nas suas inter-relações.
3.
Geocrítica e Ensino
A
Geografia crítica escolar -- isto é, aquela praticada
no ensino fundamental e médio -- possui uma dinâmica
própria e relativamente independente da sua vertente acadêmica. É importante
ressaltar esse fato, pois muitos imaginam, de forma ingênua
ou até mesmo preconceituosa, que as disciplinas escolares
(Matemática, Língua portuguesa, Ciências, História,
Geografia...) tão somente reproduzem, de forma simplificada,
os conteúdos que são criados e desenvolvidos na universidade,
no ensino superior, na graduação e na pós-graduação. É como
se o professor da escola fundamental e média fosse apenas
um reprodutor do saber construído em outro lugar, o "lugar
competente", e a sua tarefa consistisse essencialmente em adaptar
esse saber à faixa etária do aluno. Seu labor seria
então "didático" num sentido tradicional:
como ensinar da melhor maneira um determinado conteúdo já pronto
e que o educando deve meramente assimilar.
Mas
essa forma de ver é parcial
e, no extremo, autoritária. Pois ela ignora que o professor
e os seus alunos também podem ser co-autores do saber, também
podem pesquisar e chegar a conclusões próprias e que
não são meras cópias ou simplificações
do conhecimento já pronto e instituído. O professor
crítico e/ou construtivista -- e não podemos esquecer
que o bom professor é aquele que "aprende ensinando" e
que "não ensina mas ajuda os alunos a aprender" --
não apenas reproduz mas também produz saber
na atividade educativa. E tampouco o educando pode ser visto como
um receptáculo vazio que irá assimilar ou aprender
um conteúdo externo à sua realidade existencial, psicogenética
e sócio-econômica. Ele é um ser humano com uma
história de vida a ser levada em conta no processo de aprendizagem,
que reelabora, assimila à sua maneira --inclusive reconstruindo
ou até criando --, o saber apropriado para tal ou qual disciplina.
E
na Geografia essa característica essencial da verdadeira
atividade educativa talvez seja ainda mais acentuada do que em outras
disciplinas, tais como, por exemplo, na Física ou na Matemática.
Isso porque no ensino da Geografia é importantíssimo
-- é mesmo indispensável -- o estudo e a compreensão
da realidade local onde os alunos vivem, onde a escola se situa.
Isso não está (nem poderia estar) nos manuais -- no
máximo existem neles dicas, ou esquemas sempre passíveis
de aperfeiçoamento para se estudar este ou aquele aspecto
dessa realidade --; e não se trata somente de "aplicar" as
definições ou as explicações contidas
no "conteúdo geral", mas também de (re)criar
conceitos e explicações, descobrir coisas novas
enfim.
Por
sinal, a Geografia escolar é anterior ao advento da chamada
Geografia científica ou acadêmica. Parodiando um estudioso
da História do pensamento geográfico, Horácio
Capel, podemos lembrar que muito antes de existirem os geógrafos
já existiam os professores de geografia. Isto é, muito
antes de a Geografia ser considerada uma "ciência" ou
uma disciplina universitária, muito antes dela ter sido institucionalizada
em meados do século XIX com Humboldt e Ritter, já existiam
aulas de Geografia (para crianças, para adolescentes e até mesmo
para adultos) e manuais que procuravam esquematizar esse saber escolar e
prático (pois servia para viagens, para o comércio,
para a guerra...). Podemos inclusive afirmar que, em grande parte,
a institucionalização da Geografia no século
XIX deveu-se fundamentalmente à necessidade de formar um número
cada vez maior de professores dessa disciplina para o sistema escolar
em (enorme) expansão no período. E o mesmo ocorreu
no passado recente, com o surgimento da Geografia escolar crítica,
e continua a ocorrer nos dias atuais, com inúmeras novas experiências
no ensino elementar e médio que, em alguns casos, produzem
inovações em relação ao que já existe
na produção acadêmica.
Dessa
forma, não
foi após e muito menos devido às revistas Antipode e Hérodote que
o estudo crítico da Geografia se desenvolveu nas escolas elementar
e média. Essas revistas devem ser vistas mais como um marco
-- ou um símbolo -- na renovação da Geografia
universitária e de pesquisas a nível superior, mas
pouca importância tiveram (atenção: escrevemos pouca e
não nenhuma) naqueles níveis de ensino. Não
que esses níveis de ensino estivessem "atrasados" e
levassem muitos anos para se atualizar. Nada disso. É que
muito antes do advento das geografias radical e crítica (acadêmicas)
já existiam centenas, talvez milhares de professores de Geografia
nas escolas de nível médio e fundamental II que inovavam as suas lições -- inclusive buscando subsídios
na economia, na sociologia, na história, no marxismo... e
principalmente nas lutas sociais de suas épocas/lugares --
e incorporavam o estudo do subdesenvolvimento e dos sistemas sócio-econômicos,
das relações de gênero (homem/mulher), das sociedades
ditas primitivas, dos problemas sociais urbanos, da reforma agrária
(tema tão importante no Brasil do início dos anos 1960!),
e isso em muitos casos ANTES desses temas serem abordados pelos compêndios
ou mesmo pelas teses, artigos e livros acadêmicos de geografia.
Uma
parte importante dos geógrafos críticos acadêmicos
começou como professores do ensino fundamental e médio,
e foi principalmente aí que eles iniciaram as suas
reflexões
e as novas abordagens, que depois foram
sistematizadas/reelaboradas
com vistas à produção de trabalhos universitários.
Não é difícil entender porque isso ocorreu,
e ainda ocorre, embora em menor grau hoje devido aos
baixíssimos salários pagos aos docentes (bem menores, em termos de poder
aquisitivo, que nos anos 1960 ou 70), fato que leva uma boa parte dos
melhores alunos de graduação a seguirem outras carreiras e não o
magistério (outra realidade que também não existia, ou existia numa grau
bem menor, naquelas mencionadas décadas) e devido à existência de um
maior controle sobre o que o professor leciona (através dos PCN's ou
propostas curriculares estaduais ou municipais, compêndios que devem
passar por um crivo de avaliadores do MEC, multiplicação de cursos
apostilados que visam unicamente resultados em vestibulares ou testes
avaliativos padronizados, etc.). Malgrado a idéia preconcebida segundo a
qual
o professor no ensino fundamental e médio não inova,
não cria, não ousa sair da rotina e do tradicionalismo
(a não ser quando algum novo "programa oficial" o
obrigue a isso), em geral ele -- ou melhor, alguns deles
-- faz tudo
isso com uma freqüência maior do que os trabalhos
acadêmicos.
Ao contrário do que se imagina, é muito mais fácil
(e freqüênte, convém enfatizar) inovar no conteúdo
e nos métodos de um curso no ensino médio, em especial
nas escolas públicas (ou em algumas poucas
particulares), do que
em teses e outros trabalhos acadêmicos. (O que não
significa
que essas inovações não ocorram neste caso. Elas
ocorrem,
sem dúvida, mas pelo menos na Geografia e nos anos 1960,
70
e 80 foram em geral posteriores, e não anteriores, ao
que
já se vinha fazendo, pelo menos em parte, no ensino
médio).
As regras na academia são mais sedimentadas e fechadas, o
controle por parte das bancas, das comissões de
publicações,
etc., é maior e normalmente existe um maior apego aos
estereótipos
ou às idéias pré-definidas sobre o que deveria
ser abordado naquele assunto X ou Y. Só para citar um
exemplo,
poderíamos lembrar que Yves Lacoste, cuja importância
para a definição da Geografia crítica já foi
mencionada, teve enormes dificuldades em conseguir ser
aprovado (só o
foi depois de várias tentativas e sendo obrigado a
"caçar" em
locais distantes professores titulares que aceitassem
participar
da sua banca!) na sua tese de livre-docência na França
devido ao tema -- "Unidade e diversidade do Terceiro
Mundo (Das
representações planetárias às estratégias
sobre o terreno)" -- e à abordagem geopolítica
do assunto, considerados na época (em pleno início
da década de 1980!) como "não geográficos" e
políticos em demasia, isto é, "não neutros".
Pois bem: esse geógrafo, que também começou
como professor no ensino fundamental e médio (e autor de
livros
didáticos), já trabalhava com esse assunto na sua
atividade
docente e nos seus manuais muito antes de ter feito essa
pesquisa
acadêmica. Mesmo aqui no Brasil poderíamos escavar
inúmeros
casos similares, pois a abordagem, no ensino fundamental
e médio,
de temas/problemas tais como as relações de gênero,
críticas ao socialismo real e à burocracia, choques
culturais, orientação sexual, o novo racismo, etc.,
foi indiscutivelmente anterior a qualquer pesquisa, tese
ou publicação
oriundas dos departamentos de geografia das
universidades.
Isso
não
significa que não existam ou que não devam existir
relações de complementariedade entre a universidade
e a escola básica. Mas essas
relações são mais complexas do que a idéia
simplista segundo a qual o ensino fundamental e o médio devem apenas "simplificar" e
reproduzir o conteúdo que é produzido na academia.
Esta idéia, infelizmente dominante, costuma gerar verdadeiras
aberrações: "propostas curriculares" ou PCN's
para os ensinos fundamental e médio feitos por professores universitários
que não têm experiência nesses níveis de
ensino e que desconhecem completamente a realidade dos alunos que
aí estudam. Costuma-se também pura e simplesmente ignorar,
e portanto não aproveitar, as experiências inovadoras
que os professores -- pelo menos alguns -- estão produzindo
nas escolas. O resultado, normalmente (existem algumas exceções,
mas são casos em que os elaboradores tinham vasta experiência
nesses níveis de ensino e contaram com a colaboração
ativa de professores que atuam na sala de aula), é que esses
currículos são impraticáveis e acabam não
sendo operacionalizados (embora muitos professores sejam obrigados
a fingir que os utilizem, para agradar a alguns burocratas que tentam
controlar a atividade docente); esses currículos em geral
estão aquém daquilo que muitos professores
praticam e mais atrapalham do que ajudam na melhoria do sistema
escolar.
A
Geografia crítica escolar, portanto, não consiste na
mera reprodução na escola fundamental e média
daquilo que foi anteriormente elaborado pela produção
universitária crítica. Isso até pode ocorrer,
mas não é -- e nunca foi -- o essencial ou mesmo a
regra geral. O essencial é levar em conta a realidade dos
alunos e os problemas de sua época e lugar. Como se sabe,
a Geografia escolar crítica -- ou as geografias, na medida
em que não existe um caminho ou um esquema único --
se opõe à Geografia tradicional e normalmente mnemônica
(isto é, que enfatiza a memorização, a lista
de fatos ou acidentes: cidades principais, unidades de relevo, rios
e seus afluentes, tipos de climas, cidades-capitais, etc.), que tem
por base o esquema "A Terra e o Homem". Mas é lógico
que a própria Geografia tradicional conheceu várias
fases e nuanças e nunca foi um bloco monolítico. Existiram
aí autores que valorizaram a explicação e combateram
veementemente a descrição e a memorização
(por exemplo: Delgado de Carvalho, Pierre Monbeig, Nilo Bernardes
e outros), que incluiram bons textos literários nos seus manuais
(exemplo: Clóvis Dottori e outros) e até mesmo, em
especial na última fase da Geografia tradicional francesa,
com Pierre George e a sua entourage -- a chamada "escola
georgeana" --, que incorporaram novos temas (subdesenvolvimento,
sistemas sócio-econômicos, "explosão demográfica",
organização do espaço e planejamento, região
como espaço polarizado, etc.) que em alguns casos demandaram
uma análise crítica do real. Mas foi uma crítica
limitada e parcial: nunca ancorada nos movimentos sociais, mas sim
em um modelo de "ciência" objetiva e neutra; e tampouco
incorporando ou dialogando com autores/escolas críticos (anarquismos,
Foucault, Escola de Frankfurt, Lefebvre, Gramsci e outros marxistas,
etc.); e, acima de tudo, essencialmente preocupada em valorizar a
Geografia frente ao Estado e às grandes empresas através
da proposta de uma "Geografia ativa" ou voltada para a
ação (ou melhor, para o planejamento). A Geografia
escolar crítica vai além desses avanços que
ocorreram na Geografia tradicional -- embora os assimilando à sua
maneira -- e preocupa-se basicamente com o desenvolvimento da autonomia,
da criatividade e da criticidade do educando -- com a cidadania,
afinal, que é o resultado e a condição da existência
de cidadãos ativos e participantes, que questionam e (re)constroem
os direitos -- e com uma sociedade mais justa e igualitária,
na qual os direitos das minorias (inclusive o direito de ser diferente)
sejam preservados.
Um
ensino crítico da Geografia, assim sendo, não se limita
a uma renovação do conteúdo -- com a incorporação
de novos temas/problemas, normalmente ligados às lutas sociais:
relações de gênero, ênfase na participação
do cidadão/morador e não no planejamento, compreensão
das desigualdades e das exclusões, dos direitos sociais (inclusive
os do consumidor), da questão ambiental e das lutas
ecológicas, etc. Ela também - e principalmente - implica
em valorizar determinadas atitudes -- combate aos preconceitos; ênfase na ética,
no respeito aos direitos alheios e às diferenças; sociabilidade
e inteligência emocional... -- e habilidades (raciocínio,
aplicação/elaboração de conceitos, capacidade
de observação e de crítica, etc.).
E
para isso é fundamental
uma adoção de novos procedimentos didáticos:
não mais apenas ou essencialmente a aula expositiva,
mas sim estudos do meio (isto é, trabalhos fora da sala de
aula), dinâmicas de grupo e trabalhos dirigidos, debates, uso
de computadores (e redes) e outros recursos tecnológicos,
preocupações
com atividades interdisciplinares e com temas transversais, etc.
E muito menos pode-se omitir o estudo da natureza, a geografia física,
como querem alguns. Não é porque alguns geógrafos
críticos ou radicais famosos e importantes abordam somente
temas sócio-econômicos que a geografia escolar deve
fazer o mesmo. Esse geógrafos, a bem da verdade, são especialistas
e, via de regra, não possuem experiência (e nem qualquer
interesse) no ensino básico. Só que, repetimos,
o objetivo da disciplina escolar Geografia não é reproduzir
o discurso desses geógrafos especialistas e sim levar o educando
a compreender o mundo em que vive, o espaço geográfico
desde a escala local até a global. E a compreensão desse
espaço passa necessariamente pelo estudo da natureza-para-o-homem,
das paisagens naturais enquanto encadeamento de elementos (clima,
relevo, solos, águas, vegetação e biodiversidade),
que possuem as suas dinâmicas próprias e independentes
do social. E também passa, principalmente nos dias de hoje,
pelo estudo da questão ambiental, que não pode prescindir
da dinâmica da natureza (e suas alterações/reações
frente à ação humana), e que é fundamental
para se perscrutar os rumos da humanidade e de cada sociedade nacional
neste novo século.
Referênicia: http://www.geocritica.com.br/geocritica.htm |
Um puta texto. Esclarecedor e instigante, por saber que se pensa a geografia como instrumento potente de transformação social que ela é.
ResponderExcluir